quarta-feira, 7 de abril de 2010

UMA COISA EXTRAORDINÁRIA E TERRÍVEL



O ato de escrever tem em si um pouco da idéia ou sentimento de como a vida começou, o início, a origem. Tanto a versão bíblica quanto a da ciência determinam um ponto de partida – no início era a escuridão ou era o caos. Escrever então não começa na primeira letra aí em cima, no início do parágrafo, arrastando a primeira palavra e com ela as outras. Também no ato de escrever há um momento antes da luz ou de uma explosão. E é este estado anterior ao gesto que faz toda a diferença.
Se eu estava pensando, após ficar dois dias reclusos em casa, e ao sair, como é bom reconhecer a minha cidade, meus conhecidos, como é bom reconhecer o casario e ser reconhecido por ele, - se eu pensava assim antes de sentar para escrever e se eu pensei agora que sentar para escrever é um lugar-comum, para logo responder a mim mesmo que ninguém escreve em pé, mas por que não? Talvez sim. Talvez eu escreva para assentar as idéias, mas aí seria um jogo de idéias ou de palavras. E seria verdade também que neste momento eu já estaria escrevendo sem ao menos me dar conta disso – como quando a gente nasce, alguém se dá conta? Poxa, uma imagem mais bonita ainda: e se a gente se desse conta no exato momento em que fôssemos fecundados? Quando ainda não tivéssemos dois braços ou duas pernas mas tão-somente duas células? Este seria realmente o nosso marco inicial? E se, como idéias, teoria ou sonho, já existíssemos na cabeça e no coração de nossa mãe? Você está entendendo aonde eu quero chegar? Onde começamos. No ato de escrever. Que também, como nós, tem um começo indeterminado mas que precisa ser continuado.
Machado de Assis um dia escreveu que o pior que pode nos acontecer é nascer. Millôr Fernandes também já escreveu este dístico filosófico: Quem começa, já fez. Fernando Sabino também já disse que escrever é fácil: é só olhar fixamente para a página em branco até suar sangue. Então, meu amigo, se for escrever, não pegue o assunto do momento, não escolha várias pautas, não fale sobre o que você domina nem sobre o que domina você (sobretudo não faça jogo de palavras nem ponha as palavras em jogo, ou em jugo, nem tampouco salpique seu texto com parêntesis explicativos num dos quais você pode correr o risco de, se estendendo, ficar pensando que escreve a palavra tampouco lendo-a como tãopouco) e jamais, ao fechar um parêntese, deixe aquela idéia anterior a ele órfã.
Órfã é só uma palavra mas repare que nela o erre, o efe e o a estão de mãos dadas e é o ó, menino de topete, o órfão que quer entrar para esta família, em que a mãe r seria Rosa, o pai f, Fernando, e a menina ã Aninha. Repare então na palavra órfão. O menino, Otavinho, já foi aceito na família que o adotou, e agora é o seu irmãozinho, também órfão, que quer entrar pra família. Será que este outro menino também fará parte desta boa família?
E é aqui que eu deixo você: o que é, exatamente, quem escreve? Se ele é o autor, o criador, é ele quem dá vida a personagens, a idéias que parecem ter nascido da sua cabeça, isto sim, pois você concorda com tudo, ou antes, ele fez você pensar junto com ele, ou pior, tirou os pensamentos, a fórceps, do seu espírito. Mas e se ele não for nada disso? E se ele titubear como você, e se ele consultar dicionários e o Google, se ele não usar uma palavra correta só porque a acha feia? E se ele sentir fome enquanto escreve, ou sede, medo ou solidão? E se ele de repente se pergunta para quem está escrevendo? E se ele souber exatamente pra quem, pra você? Que coisa extraordinária, ou terrível.

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